Pensamos, logo existimos. Desculpe- me, leitor, começar este texto assim, com um clichê já tão propagado da filosofia – e com a licença de ainda colocá-lo no plural, vá lá... Mas é difícil encontrar um argumento mais certeiro para definir a existência humana que nossa capacidade de pensar, não é mesmo? A verdade, entretanto, é que algo parece errado nesse raciocínio tão lógico. Errado, não. Talvez incompleto. Afinal, nós só nos tornamos efetivamente humanos na medida em que conseguimos combinar nossos pensamentos – e aí, vale incluir o que pensamos sobre os outros e o mundo ao nosso redor – com outras formas de conhecimento de que dispomos, como nossos sentimentos, nossas sensações e nossas intuições para percebermos o mundo que nos rodeia.
Às vezes, mesmo quando a razão tenta nos demover de uma ideia que parece logicamente infundada, nós vamos lá, damos a cara a bater. Teimamos e, vez por outra, ainda provamos que nossa própria razão estava redondamente enganada. Afinal, nossa consciência de mundo não dá conta de ser tão racional assim – ou de buscar racionalidade em tudo. Por isso, somos capazes de perceber muitas coisas sem que elas passem pelo crivo da razão. Os sentimentos estão aí para comprovar. Quem nunca se apaixonou a ponto de perder as estribeiras da lógica?
Outra forma de conhecimento não respaldada pela razão está na intuição, que vem do latim intueri e significa considerar, ver anteriormente. Sabe quando você tem a certeza de alguma coisa, mas não sabe explicar por que ou de onde ela veio? Pois então, isso é uma manifestação dessa nossa intuição, uma capacidade de conhecimento que eu e você temos, mas que nem sempre valorizamos, é verdade. Porém, está na hora de reavaliarmos nossa forma de tomarmos consciência sobre as coisas: os pressentimentos podem nos levar a tomar decisões melhores que as deliberações racionais. Para compreender, não basta pensar. É preciso sentir e, principalmente, intuir.
A razão tem razão?
Não é difícil entender por que muita gente ainda torce o nariz para a intuição. Hoje o modelo de conhecimento que temos no mundo moderno ocidental ainda é muito embasado pelo pensamento racional e lógico. “É algo que herdamos dos gregos há mais de 2 mil anos”, afirma o psicoterapeuta e filósofo Ari Rehfeld. Uma frase do tipo “eu acredito que seja assim por pura intuição” dificilmente vai convencer um amigo ou um chefe. Por sabermos disso, tratamos de sabotar internamente nossos sinais particulares, não dando a devida atenção a eles. O pior é que desperdiçamos, assim, uma poderosa ferramenta para tomarmos decisões muito melhores.
A intuição é uma aptidão que todos nós temos, mas que precisa ser desenvolvida – assim como a própria capacidade de pensar. É aquela percepção ou decisão que aparentemente não tem uma explicação lógica e que até contraria o senso comum, mas que no fim das contas faz todo o sentido. Ela funciona como um guia interno, que se manifesta através de um conhecimento não-linear. “Por isso a intuição aparece através de sensações inexplicáveis, insights, sonhos, ou de uma voz interna que parece dizer ‘sim, isso está certo’ ou ‘isso não vai funcionar’”, diz a psiquiatra americana Judith Orloff, autora do livro Second Sight (“Outro olhar”, numa tradução livre, ainda sem edição no Brasil). É difícil explicar a intuição porque ela é como um lampejo, uma resposta imediata que nossos neurônios constroem diante uma situação. “Um pressentimento sempre nos inquieta porque não sabemos de onde ele surgiu, ele não vem a partir de um raciocínio consciente, mas de um lugar desconhecido da nossa mente”, escreve Judith.
A lógica e os modos conscientes de pensamento monopolizaram nossa forma de compreender o mundo. Mas, no entanto, a lógica é apenas umas das muitas ferramentas úteis de que a mente pode se valer. “Até porque há informações e percepções que vão direto para o inconsciente, sem passar pelo filtro do nosso consciente”, complementa Rehfeld. Filósofos como Platão já valorizaram a intuição como um ponto de partida para suas ideias. As sacadas surgiam intuitivamente e, depois, eles tratavam de colocá-las à prova sob a luz do racionalismo. “Mas hoje vivemos num mundo em que não temos tempo de parar e intuir. Estamos condenados ao ritmo do pensamento racional”, diz o psicoterapeuta.
Menos é mais
Em plena era da informação, sofremos mesmo do mal do “pensar demais”. Tanto que, de muito raciocinar, sobrecarregamos toda a capacidade de atenção do cérebro, comprometendo a saúde da mente. Como resultado, acabamos entregues à depressão e à ansiedade. Pensar demais e saber demais podem se transformar em um problema. Durante uma viagem à Itália, a musicista Abbie Conant foi convidada a fazer um teste para a Filarmônica de Munique. Os 33 candidatos tiveram que tocar atrás de uma tela, que os tornava invisíveis ao comitê de seleção. Conant se concentrou para fazer uma apresentação perfeita, mas errou uma nota. Ela pensou que seria desclassificada. Mas todos do comitê estavam estarrecidos com o que tinham ouvido. O diretor da Filarmônica ficou tão excitado que despachou de volta os candidatos que ainda não tinham se apresentado.
Mas, quando chamaram Conant, ficaram surpresos – e decepcionados – por ela ser mulher. Mulher e trombone não combinavam para o diretor da Filarmônica. E, apesar de ter vencido todas as rodadas de audições, ela entrou para a orquestra contra a vontade do diretor que, um ano depois, a rebaixou para segundo trombone. Conant ficou tão indignada que levou o caso para os tribunais. Como provas, fez uma batelada de exames: soprou em máquinas especiais e teve até seu sangue examinado para comprovar sua capacidade de absorção de oxigênio. Todos os resultados foram acima da média. Só depois de oito anos, por determinação da justiça, é que ela foi reintegrada à posição de primeiro trombone.
A história é contada no livro Blink – A Decisão num Piscar de Olhos, do jornalista americano Malcolm Gladwell, e mostra que, se tivessem levado em consideração apenas a primeira impressão da audição de Conant, os membros da Filarmônica teriam uma grande artista como primeiro trombone desde o começo. “Mas, por acharem que ela poderia ser frágil para um instrumento tão masculino, resolveram dar crédito ao pensamento racional, que indica que as mulheres são menos aptas a instrumentos que exigem maior fôlego, e não ao que tinham ouvido”, escreve o jornalista. Isso também acontece com muitos de nós. O ato de pensar objetivamente nas razões pode levar a decisões que nos deixam menos satisfeitos. Analisar todos os lados da questão pode não ser uma boa tática.
A mente intuitiva
A questão é que nem que nos esforcemos muito podemos tomar todas as decisões da nossa vida sob o crivo da razão. Nossa mente trabalha melhor relegando ao inconsciente uma boa parcela do pensamento racional – ela não daria conta de tudo, se não usasse esse artifício. Por causa disso, a própria evolução dotou nossa mente da capacidade de reagir antes mesmo de pensar quando estamos diante de uma situação de risco – a intuição é, portanto, uma aptidão evolutiva. “O instinto que nos faz hoje optar por algo que conhecemos equivale ao instinto de sobrevivência no mundo selvagem. Podemos escolher uma refeição com ovos verdes, mas você não escolheria uma opção menos exótica, se pudesse?”, questiona o professor de Psicologia da Universidade de Chicago, Gerd Gigerenzer, no livro O Poder da Intuição. “Quando optamos por alimentos que conhecemos, obtemos as calorias necessárias sem perder tempo de arriscar a sorte para saber se a refeição exótica é tóxica.”
Antes mesmo que você considere o ovo colorido, sua mente já mandou um recado que é melhor comer o velho ovo com clara branca e gema amarela. A intuição permite à nossa mente colocar alguns comportamentos e decisões em piloto automático. “Pensar toda vez em como se anda de bicicleta ou como se deve sorrir nem sempre é melhor do que fazer ambas as coisas de forma automática. As partes inconscientes da mente são capazes de decidir sem que nós – ou o eu consciente – conheçamos as razões”, afirma Gigerenzer.
Somos capazes de fazer uma viagem inteira dirigindo por uma estrada com buracos e condições adversas sem sequer racionalizar uma parte do trajeto sequer. Mas isso só foi possível depois de a mente ter adquirido conhecimento suficiente para poder relegar ao inconsciente a tarefa de conduzir a direção. O mesmo ocorre com nossa intuição. Afinal, nós só temos intuições a partir de experiências, de informações e do conhecimento que obtivemos, voluntariamente ou não. “Na verdade, a natureza dá ao ser humano um potencial, e a prática ao longo do tempo se transforma numa capacidade.” A mente intuitiva se adapta e age com economia valendo-se do inconsciente, das aptidões evolutivas e dos métodos empíricos que desenvolvemos no decorrer da nossa vida. Eles consistem em procurarmos nos ater à informação mais relevante e ignorar o resto. Na maior parte das vezes, os pressentimentos se baseiam num volume surpreendentemente pequeno de informações.
Como no caso de uma proposta de emprego em que o salário é ótimo, mas, segundo aquela sua amiga, o chefe do departamento é um grosso e o clima organizacional, bastante tumultuado. Empiricamente, a única informação que você pode comprovar é que o salário oferecido é o triplo do que você ganha. A relação pessoal da sua amiga com o chefe e a equipe pode ser relativa – ou um problema só dela. Vai de você confiar na informação de que dispõe ou levar em consideração tudo o que ouviu. Por isso, a intuição tem a ver com palpites, com os riscos que corremos e que só a vivência e a experiência vão nos mostrar se acertamos ou não.
Atenção aos sinais
As pessoas que resolvem seguir sua intuição e se dão bem passam a dar mais valor aos avisos e sinais que o inconsciente lhes dá. A cantora Tiê sempre foi de dar ouvidos aos seus pressentimentos. “Se eu cismo com uma coisa que acho que pode não ser legal, não faço. E é muito difícil alguém me convencer do contrário”, diz. Ela já se negou a participar de shows simplesmente por achar que não valeriam a pena – ao mesmo tempo que aceitou fazer outros em lugares aparentemente nem tão legais mas que sua intuição dizia ser a melhor escolha. “E é engraçado que meus palpites sempre se comprovam.” Tiê também usa sua intuição na hora de criar e compor. Dá mais valor às ideias que surgem espontaneamente e dificilmente fica pensando e alterando notas e palavras depois. “Dos cinco sentidos, acho que o olfato é o que eu tenho mais apurado, por isso costumo brincar que a intuição é o olfato da mente, porque nos permite farejar de longe as coisas. Dificilmente a gente se engana com um cheiro, né?”
Intuir, na verdade, significa utilizar um outro sentido de que dispomos além da visão, da audição, do olfato, do paladar e do tato. É mesmo como um “sexto sentido” colocado à nossa disposição e que nos ajuda a melhorar nossa relação com o mundo e facilitar nossa vida. E da mesma forma que, quanto mais nós ouvimos, melhor reconhecemos um ruído, quanto mais usamos a intuição, melhor conseguimos aproveitar os pressentimentos. A intuição melhora com a experiência sem que a gente se dê conta. Um ótimo executivo é capaz de prever se um produto vai ter sucesso de mercado mesmo que as pesquisas que sua empresa encomendou indiquem que não – e que não consiga explicar logicamente seus argumentos. Isso porque, em anos de carreira, teve experiências suficientes para conhecer o mercado e armazenar registros inconscientes. Claro que não significa que ele tenha poderes sobrenaturais, mas que aprendeu a perceber os sinais que sua mente dá mesmo quando as coisas não pareçam ter lá muita lógica.
Isso só é possível através do conhecimento que temos – do mundo que nos cerca e de nós mesmos. É o autoconhecimento, aliás, que nos permite reconhecer os pressentimentos que a nossa mente tem. Porque é fácil confundir intuição com desejo e com medo. Se estamos em um relacionamento que nos faz mal, por exemplo, é fácil intuir que precisamos buscar uma nova forma de ser feliz. Mas isso diz respeito a um desejo interno, que nem sempre é tão claro e que, por causa disso, pode ser erroneamente interpretado como intuição. “Uma pessoa que tem a sensação estranha de que seu avião pode cair precisa ponderar se não se trata de um medo que ela mesma tem de voar. Porque a mente de um fóbico tende a projetar todos os riscos relacionados a um medo”, diz a psicóloga Virgínia Marchini, diretora do Centro de Desenvolvimento do Potencial Intuitivo, em São Paulo.
Se estivermos realmente atentos aos sinais do inconsciente, defende Virgínia, aumentamos nossa capacidade de usar nossa intuição e de decidir acertadamente. Para que isso ocorra, precisamos estar com a mente mais tranquila possível – afinal, quanto maior nosso nível de estresse e de ansiedade, menor a acuidade dos nossos sentidos. “Nervosos e agitados, somos menos propensos a sentir gostos, diferenciar cheiros e, consequentemente, perceber pressentimentos”, diz. A intuição depende de um estado mental de relaxamento. As pesquisas indicam que, nesse estado, a mente intuitiva não precisa de mais de dois segundos para que seja capaz de tomar decisões.
Confiar (e agir)
Desenvolver a intuição significa adotar uma postura mais reflexiva e trabalhar a autoconfiança. Apostar naquilo que você percebe e sente. Dedicar-se um tempo ao silêncio e ao recolhimento ajuda. Registrar e interpretar sonhos e impressões, também, porque essas práticas facilitam o acesso ao mundo interno, assim como ler, conhecer, assistir, viajar. Outros sinais aparecem em nosso próprio corpo, não apenas na mente. Sintomas físicos como insônia e agitação podem indicar desconforto com uma situação ou decisão que se esteja pensando em tomar. “Cada um de nós tem a sabedoria e o conhecimento de que necessita em seu próprio interior”, escreveu o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, um defensor da intuição. Precisamos só estar abertos a identificá-los, já que, afinal, tendemos a viver tão melhor à medida que percebemos o que nos rodeia.
Intuir, portanto, é enxergar melhor o mundo olhando para dentro de nós mesmos. Por isso é preciso confiar nas nossas próprias intuições. De nada adianta abrir uma comunicação com o inconsciente se esse conhecimento não impulsionar ações. “A intuição é vivencial, precisa ser praticada”, diz a psicóloga Virgínia. Assim como precisamos experimentar relacionamentos para quebrar a cara ou colocar a mão no fogo para perceber que ele queima. E viver é mesmo correr riscos, fazer apostas. E, para isso, nem sempre basta apenas pensar.
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